Lições de Nairóbi e
de Roma
Milton R. Medran
Moreira *
Não existe pior tirania que a da fé. Quando e onde se a coloca como instância
mais importante da vida, todo o restante, inclusive a vida, deixa de ter
qualquer significado. Por isso, fé e liberdade, democracia e fé, assim como fé
e igualdade ou fraternidade e fé, são incompatíveis, desde que o objeto da fé
extrapole os valores humanos.
Repetir com Protágoras que “o homem é a
medida de todas as coisas” não implica, necessariamente, em inadmitir a
existência de uma ordem superior ou uma inteligência suprema às quais todo o
universo se conforme. Entretanto, dicotomizar a vida entre o natural e o
sobrenatural, sacralizando este e a ele subordinando a natureza humana é, em
qualquer circunstância, sobrepor a barbárie à civilização. É investir na
perpetuidade do império do fanatismo em detrimento do reinado da razão e dos
sentimentos, conquistas que fomos amealhando, aprimorando e consolidando no
processo evolutivo.
Quando o Papa Francisco afirma
não ser de sua competência ou da Igreja que preside julgar ou condenar os
homossexuais, quando acena para atitudes de compaixão em vez de condenação a
quem pratica o aborto, quando dá mostras da possibilidade de revisão de temas
como divórcio, celibato clerical, pluralismo religioso, diálogo com não
crentes, ou quando sugere que mulheres, tanto como os homens, participem da hierarquia
eclesiástica, o bispo de Roma se despe dos paramentos que o ligam a uma
hipotética ordem sobrenatural para revestir seu espírito da concretude humana.
É somente nesse terreno que podemos, todos, nos reconhecer verdadeiramente
irmãos e, nessa condição, buscarmos caminhos, por certo plurais, de
transcendência dessa provisória, mas natural, realidade para outros estágios
sonháveis e possíveis, mas sempre naturais. Espiritualidade, para ser genuína,
não pode se apartar da natureza, porque o espírito é sua parte integrante.
Toda a realidade até aqui
conhecida pelo ser humano tem a exata dimensão do homem. Todos os valores
éticos até aqui construídos, assimilados e normatizados são obra humana,
conquistas às vezes duramente obtidas apesar da religião e, mesmo, contra ela.
Religião que não se dobra à primazia da razão humana se faz desumana, no
sentido que a modernidade conferiu a esse adjetivo, dando-lhe a sinonímia de
cruel. Escudar-se em presumíveis razões divinas contrárias à razão assimilável
pela inteligência humana para legislar, julgar, sentenciar e executar pessoas é
confiscar o poder divino. É que a única forma de pensarmos e sentirmos o divino
é perscrutando-o na razão e nos sentimentos humanos, medida de que dispomos
para auscultar o bom e o belo.
Quando todos formos
verdadeiramente humanos, como, reconheça-se, está buscando Francisco sê-lo, não
mais haverá lugar para tragédias como a do Westgate Mall de Nairóbi. E, então,
talvez, ninguém mais precise de religião, porque esta terá se conformado aos
autênticos anseios humanos, reflexos da presença divina na natureza inteira.
*Procurador de
Justiça aposentado e jornalista. Presidente do Centro Cultural Espírita de
Porto Alegre.
Artigo publicado no
jornal “ZERO HORA” de Porto Alegre em 25/09/2013