Simplesmente,
humano.
“É uma pessoa que não tem nada de inquisidora,
extremamente afável, gentil, absolutamente tranquila”. (Leonardo Boff, sobre Bento
XVI, 2005)
Só o tempo ou, quiçá, nem ele, poderá revelar
à História todas as razões que levaram o Papa Bento XVI à renúncia de seu
pontificado. Demitir-se de um cargo para o qual foi eleito vitaliciamente e que
alça seu titular, no imaginário popular e por força da fé e da tradição, à
distinguida condição de “representante de Deus na Terra”, é gesto tão singular
quanto surpreendente.
Da instituição por ele dirigida reconhece-se,
mundialmente, sua força e poder. Mesmo que a História lhe haja imputado, ao
curso dos tempos, a autoria de graves violações aos mais caros valores
civilizatórios, seus dirigentes e fiéis chamam-na de “santa”. E, conquanto da
lista de seus sumos pontífices, constem nomes a quem se atribuem atos da mais
abjeta imoralidade e flagrante injustiça, o titular do cargo, recebe, em
qualquer circunstância, o tratamento de “Santidade”.
O adjetivo que antecede a nominação da Igreja
Católica Apostólica Romana e o tratamento reverencial reservado a seu sumo
pontífice, justificam os teólogos, não se vinculam exatamente ao procedimento
institucional e pessoal eventualmente adotado por um por outro, mas da missão
sacrossanta de que estariam investidos. Em tese, pois, estariam ungidos da
perfeição e das virtudes divinas, mas, na prática, como qualquer pessoa ou instituição,
sujeitam-se aos erros pertinentes à humana imperfeição.
Difícil entender essa contradição fora do
dualismo sagrado/profano. Por muito tempo, enquanto vigia no mundo a crença na
existência de uma “ordem divina” em inconciliável contraste com a “ordem
humana”, aquela incorrupta, esta corrompida por força do “pecado original”,
havia lugar para esse fatal e insuperável maniqueísmo. Dentro dessa concepção,
uma única instituição poderia se arrogar o privilégio da origem divina que a
faria ponte entre os céus e a Terra. Mas, composta que é de homens,
justificava-se fosse, ao mesmo tempo, santa e pecadora, virtuosa e devassa, sem
que, com isso, perdesse autoridade e
credibilidade.
A
modernidade, no entanto, sem que, talvez disso se apercebesse claramente a
Igreja, foi, pouco a pouco, superando o maniqueísmo sagrado/profano,
divino/humano, substituíndo-o simplesmente pelo natural. O fenômeno universal é
regido por leis naturais, que abarcam o físico e o moral, o material e o
espiritual. Não é preciso tirar Deus dessa nova concepção de universo. Ele aí
está presente como “inteligência suprema e causa primeira de todas as coisas”,
consoante tenta defini-lo O Livro dos Espíritos (1857). Mas, para esse Deus não há pessoas e nem
instituições privilegiadas, acima do bem e do mal. “Criados” todos simples e
ignorantes, porque resultantes de um longo processo evolutivo, tornamo-nos
capazes de nos reconhecer mutuamente como iguais em direitos e obrigações,
sujeitos a erros e acertos e subordinados a uma mesma lei universal. Somos, no
plano e no estágio em que nos encontramos, simplesmente, humanos. Como humanas
serão todas as instituições que formos capazes de criar.
É nesse contexto que o velho conceito de
santidade vai dando lugar ao de humanidade. Descobre-se, pouco a pouco, que
toda a virtude, antes tida por revelação divina a alguns intermediários
privilegiados, está, de fato, ínsita na própria natureza humana, como fagulha
da divindade que a tudo deu origem e que a tudo alcança. Na medida em que essa
consciência se faz comum entre homens e mulheres, percebe-se que não há mais
lugar para distinções entre uns e outros e nem para outorgas representativas da
divindade, com leis que assegurem privilégios sejam esses por crença, sexo,
ideologia ou etnia.
Essa mesma consciência de humanidade que a
todos nos submete a princípios éticos universais é avassaladora. Pouco a pouco,
derruba, em todos os quadrantes, as mais resistentes autocracias e
aristocracias. Instituições, grupos raciais, políticos ou religiosos que teimam
em preservar seus membros da censura imposta por regras que a civilização e a
modernidade tornaram mundialmente cogentes, mais cedo ou mais tarde, terão de
se submeter a esse tratamento igualitário de que buscaram se furtar. É o tempo
da humanização que está um passo à frente da santificação.
Sem ser exatamente um santo, título que,
talvez, até o incomodasse, Joseph Ratzinger entendeu, quem sabe antes de seus
pares, que é simplesmente um homem e que humana é, simplesmente, a instituição
que dirigiu. Seria esse o móvel de sua renúncia?
Milton Medran Moreira - Presidente do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre
Matéria Publicada no Jornal ZERO HORA de Porto Alegre em 28 de fevereiro de 2013